O cheiro que eu carrego é nosso.
O cheiro que me vem ininterrupto, que me faz fechar os olhos e sorrir.
O cheiro que se sobressai enquanto caminho, enquanto trabalho, enquanto me lavo, enquanto sigo vivendo.
O cheiro que eu carrego é nosso.
Olho para a esquerda
e te vejo dormir.
- Dorme, dorme,
meu amor.
Dorme bem e
sonha com o nosso
cheiro...
13 de agosto de 2008
12 de agosto de 2008
O tempo do meu avô - e eu
A morte nunca me pegou de surpresa. Nunca me deu uma rasteira. A morte, pelo menos ainda, não me é um problema.
Meu avô não achava o mesmo. Ele falava sobre a dor que considerava ser a pior coisa do envelhecer: assistir a novas partidas com freqüência, ver as pessoas que fizeram parte da sua história, que foram seus irmãos, amigos, parceiros, irem embora, um por um, numa contagem duramente regressiva. E ficar esperando a sua vez.
Os últimos anos de vida de meu avô foram marcados pelo desconforto que a saúde frágil lhe trazia. Faltava fôlego para a mente absolutamente sã. Ele chorava de dor e quando o ar lhe sumia. Se espremia enquanto a lágrima caía e dizia que era insuportável a idéia de se separar de todos nós, prevendo uma saudade que a descrença na vida eterna não o impedia de temer.
A morte lhe foi natural, na hora em que tudo já foi feito. Assim, dói menos. Oitenta e dois anos de casos a contar – e que a sua memória impressionante resgatava em detalhes. Era bonito quando ele, logo após alguma reclamação chorosa sobre alguma dor sentida, se refazia de supetão e declamava um poema, ou cantava uma das canções do repertório que creio ter sido só dele, batendo palmas, sorrindo satisfeito, como que pensando o quanto aquilo era prazeroso e que sempre haveria algo feliz para compensar. Ele nunca falava ou cantava uma vez só. Repetia as palavras, depois, pausadamente, querendo que os que estivessem ao seu lado enxergassem o que via: “Você ouviu isso? Isso é lindo!”.
Meu avô era médico mas nem dava opção para a minha mãe pedir, nas muitas vezes em que precisei tomar alguma injeção, que ele cumprisse a tarefa. Ele o fez uma vez só e depois cortou a possibilidade: “Não consigo encarar assim a dor de minha neta”. O seu modo de amar era enorme, exagerado, muito próprio, dentro de suas convicções. É, meu avô era uma pessoa cheia de certezas, ele tinha muita consciência das coisas que pensava... Mas, acima de tudo, era um ser de paixões, de encantamento, de olhinhos brilhando diante de um bom filme, uma boa dança, uma boa música, uma boa comida, um bom encontro.
Pude contar com a presença intensa de meu avô durante todos meus 27 anos. Não julgo se foi pouco ou muito, porque o que me fica é, por fim, suficiente. Vê-lo partir com dignidade, deixando tantas marcas, tendo feito tantas coisas, assinando um nome respeitado, me faz enxergar a sua morte com serenidade. Sim, é difícil lembrar do nosso último encontro, quando o levamos para o hospital, porque ali tudo já estava anunciado, a energia já estava escapando... Mas, não existindo definhamento, excessos, surpresas, indignação, não há o que questionar da vida que cumpre justamente seu papel.
Fica a saudade e, com ela, sigo em frente.
Foi massa o nosso tempo juntos.
22 de maio de 1996
Minha querida neta Paulinha,
Me lembrei de um conhecido poema chamado Escalada, do poeta Judas Isgorogota. Vale a pena repetir:
A sua escalada, minha neta, será bem diferente. Não será dramática como a do poeta. É uma escalada para atingir um ponto mais alto no seu desenvolvimento. Isso é muito bom e fico muito alegre. Você é uma menina, talvez fosse melhor eu ter dito uma jovem, de muitas qualidades, apenas um pouco calada demais. Porém é de sua natureza e temos de aceitá-la assim. Você é boa, estudiosa, inteligente, sincera e bonita. Na sua escalada, atingirá alturas celestiais e fico muito orgulhoso com isso. Espero que não esqueça seu avô que lhe adora desde o momento em que lhe viu pela primeira vez, com poucos minutos de nascida. Quando chegar lá em cima, na sua escalada, lembre-se de mim e de sua avó, que estamos cá embaixo. E que a escalada de agora seja a primeira que você fará em sua vida, outras virão, mais importantes, porém a primeira é sempre a fundamental.
Beijos do seu avô
José Augusto.
Postado aqui, sobre ele, em novembro passado: Grandpa.
E cá, no Youtube, ele cantando uma de suas musiquinhas.
Meu avô não achava o mesmo. Ele falava sobre a dor que considerava ser a pior coisa do envelhecer: assistir a novas partidas com freqüência, ver as pessoas que fizeram parte da sua história, que foram seus irmãos, amigos, parceiros, irem embora, um por um, numa contagem duramente regressiva. E ficar esperando a sua vez.
Os últimos anos de vida de meu avô foram marcados pelo desconforto que a saúde frágil lhe trazia. Faltava fôlego para a mente absolutamente sã. Ele chorava de dor e quando o ar lhe sumia. Se espremia enquanto a lágrima caía e dizia que era insuportável a idéia de se separar de todos nós, prevendo uma saudade que a descrença na vida eterna não o impedia de temer.
A morte lhe foi natural, na hora em que tudo já foi feito. Assim, dói menos. Oitenta e dois anos de casos a contar – e que a sua memória impressionante resgatava em detalhes. Era bonito quando ele, logo após alguma reclamação chorosa sobre alguma dor sentida, se refazia de supetão e declamava um poema, ou cantava uma das canções do repertório que creio ter sido só dele, batendo palmas, sorrindo satisfeito, como que pensando o quanto aquilo era prazeroso e que sempre haveria algo feliz para compensar. Ele nunca falava ou cantava uma vez só. Repetia as palavras, depois, pausadamente, querendo que os que estivessem ao seu lado enxergassem o que via: “Você ouviu isso? Isso é lindo!”.
Meu avô era médico mas nem dava opção para a minha mãe pedir, nas muitas vezes em que precisei tomar alguma injeção, que ele cumprisse a tarefa. Ele o fez uma vez só e depois cortou a possibilidade: “Não consigo encarar assim a dor de minha neta”. O seu modo de amar era enorme, exagerado, muito próprio, dentro de suas convicções. É, meu avô era uma pessoa cheia de certezas, ele tinha muita consciência das coisas que pensava... Mas, acima de tudo, era um ser de paixões, de encantamento, de olhinhos brilhando diante de um bom filme, uma boa dança, uma boa música, uma boa comida, um bom encontro.
Pude contar com a presença intensa de meu avô durante todos meus 27 anos. Não julgo se foi pouco ou muito, porque o que me fica é, por fim, suficiente. Vê-lo partir com dignidade, deixando tantas marcas, tendo feito tantas coisas, assinando um nome respeitado, me faz enxergar a sua morte com serenidade. Sim, é difícil lembrar do nosso último encontro, quando o levamos para o hospital, porque ali tudo já estava anunciado, a energia já estava escapando... Mas, não existindo definhamento, excessos, surpresas, indignação, não há o que questionar da vida que cumpre justamente seu papel.
Fica a saudade e, com ela, sigo em frente.
Foi massa o nosso tempo juntos.
22 de maio de 1996
Minha querida neta Paulinha,
Me lembrei de um conhecido poema chamado Escalada, do poeta Judas Isgorogota. Vale a pena repetir:
Escalada
Tentaremos nós dois esta escalada.
Toda escalada deve ser assim:
Rude, feroz, hostil, acidentada.
Quando cansares, firmarás em mim
A tua mão cansada e minha mão cansada
Contigo subirá até o fim.
- Mas se o destino que dirige os seres
Quiser que eu volte ao de onde eu vim?
Se eu descer amanhã? – Se tu desceres,
Contigo descerei até o fim.
Tentaremos nós dois esta escalada.
Toda escalada deve ser assim:
Rude, feroz, hostil, acidentada.
Quando cansares, firmarás em mim
A tua mão cansada e minha mão cansada
Contigo subirá até o fim.
- Mas se o destino que dirige os seres
Quiser que eu volte ao de onde eu vim?
Se eu descer amanhã? – Se tu desceres,
Contigo descerei até o fim.
A sua escalada, minha neta, será bem diferente. Não será dramática como a do poeta. É uma escalada para atingir um ponto mais alto no seu desenvolvimento. Isso é muito bom e fico muito alegre. Você é uma menina, talvez fosse melhor eu ter dito uma jovem, de muitas qualidades, apenas um pouco calada demais. Porém é de sua natureza e temos de aceitá-la assim. Você é boa, estudiosa, inteligente, sincera e bonita. Na sua escalada, atingirá alturas celestiais e fico muito orgulhoso com isso. Espero que não esqueça seu avô que lhe adora desde o momento em que lhe viu pela primeira vez, com poucos minutos de nascida. Quando chegar lá em cima, na sua escalada, lembre-se de mim e de sua avó, que estamos cá embaixo. E que a escalada de agora seja a primeira que você fará em sua vida, outras virão, mais importantes, porém a primeira é sempre a fundamental.
Beijos do seu avô
José Augusto.
Postado aqui, sobre ele, em novembro passado: Grandpa.
E cá, no Youtube, ele cantando uma de suas musiquinhas.
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