26 de março de 2013
Jéssica Cristopherry
Há duas coisas que me mobilizam profundamente: a produção artística e a diversidade de expressões da sexualidade. São questões que fazem parte de minha vida, de minha rotina, que sinto como se fossem interesses instintivos, de tão naturais que soam para meus sentimentos.
Vira e mexe, eu falo que deve ter havido algum desajuste do destino para eu não ter me tornado artista. De dança, de música, de teatro ou de literatura (nesta aí, ainda vale de pensar que minhas chances não estão totalmente esgotadas). Mas também há explicações plausíveis para este erro de caminho: eu só me toquei de fato que arte é trabalho, que arte abre diversas possibilidades profissionais ao alcance de quem estiver a fim de labutar por ela, já adulta. E não me apetecia, por exemplo, disputar uma vaga na Globo ou em cima de um trio elétrico, que era o que eu compreendia como o mais aceitável de ser artista. Aquilo era distante e supérfluo demais para o que eu gostava de fazer. E eu brinquei de ser dançarina, instrumentista, cantora, atriz e escritora a infância inteira, e na adolescência também, mas tudo como se fosse sonho. E descanso. E diversão. Apenas quando o mesmo destino me enfiou neste meio para me oferecer o ganha-pão, eu entendi de verdade, ali, real, que produzir arte tem tanto deste imaginário de beleza e liberdade quanto de esforço e dedicação. Talvez mais de esforço e dedicação.
Também vira e mexe, eu falo que queria ser homem para poder ser uma drag queen. Uma drag queen fechação total. Queria poder desmunhecar e bater cabelo com todo glamour, chocar horrores com todas as libertinagens mais fantásticas. Não é uma posição ingênua de quem não sabe dos massacres sofridos pelos que fogem à heteronormatividade. Mas acharia o máximo poder dar uma banana de forma explícita e escandalosa para quem acha que as complexidades do sexo e do amor se resumem de forma compulsória às relações de macho e fêmea. Eu gosto do mundo gay. Eu gosto dos que se assumem. Eu reconheço neles um passo à frente na defesa da própria liberdade. Eu acho que eles ganham de mim no que diz respeito a medos e censuras. Eu queria ser bem viada.
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Quando soube do lançamento do documentário Jéssica Cristopherry, a minha primeira e honesta reação foi morrer de inveja. Como assim Paula Lice satisfez seus desejos transformistas?
E ela não fez isto sozinha: esteve ao lado de Rodrigo Luna e Ronei Jorge. O filme é o primeiro trabalho da Buh!Fu Filmes, conduzido pelo trio, que, tomara, vai nos presentear a partir de agora com mais outras investidas audiovisuais.
Paula, eu diria que ela é atriz, apesar de ser mais um bando de coisa, inclusive doutora. Um dia, numa conversa de um de meus temas favoritos – “como tem gente boa fazendo coisa boa no setor artístico baiano, minha gente!” –, eu fiquei muitos bons minutos falando dela. Porque ela é exemplo desta coisa toda de fazer, acontecer, de fazer bem feito, de acontecer bem acontecido. Ela trilha uma carreira respeitável, sustentável, produtiva, contínua e bonita pra danar. Eu tenho um pouco de medo dela, porque ela sempre me faz chorar. (Agora, até de lágrima de olho gordo, essa traveca.)
Ronei, eu diria que ele é músico, apesar de ser mais um bando de coisa, inclusive cineasta de formação. Depois que a Ronei Jorge e Os Ladrões de Bicicleta interrompeu atividades (uma frustração para meu coração), ele está numa produtividade que nem sei como cabe. Teve música nova, teve shows, teve gosto de saudade. E é Bequadro, é Vila da Música, é Encontro de Compositores, é trilha sonora de filme, de peça, de Amor Barato. Ronei é um dos artistas que mais me fazem ter orgulho do que se é feito de arte nesta nossa Bahia.
De comum, além do talento e do trabalho genuíno (e do poder de fazer com que eu queira falar, me expressar, escrever, dividir, pensar), eles têm uma capacidade esmagadora de encher de beleza as coisas simples. Não é difícil entendê-los, apesar de ser intrigante o quanto podem ser imensos parecendo ser banais. Que delícia.
Jéssica Cristopherry é assim. Rápido, sem firulas, sem reviravoltas, sem contornos. E, exatamente por não fazer um tratado, nem um concerto sobre as mazelas do universo transformista, ele nos pega pelo peito: para que problematizar ou querer explicar os desejos de ser “maior que a vida”? Por que não simplesmente rir e aproveitar das nossas expressões sexuais? Por que querer dar diagnóstico do modo de vida e da sexualidade alheia? Paula está ali, vívida, entregue e tão sincera com a falta de acanhamento em suas confissões – porque, né?, que é que tem? E a fala do pesquisador e diretor teatral Rodrigo Dourado, ainda que conduza importante sustento ao discurso documental, é tão leve quanto todo o resto. E pronto. Simples assim. Sem estranhamento. Sem lições de vida. Apenas feliz e possível. O recado mais certeiro.
Apresentado hoje, na estreia que tive o prazer de conferir, como uma “demonstração de amor ao transformismo”, o filme derrama respeito e afeto, e nos oportuniza querer ser outros, outras, quantas identidades couberem em corpos que dispensam definições senão a de humanos.
As próximas exibições vão acontecer em bares do Beco dos Artistas, que são também cenário do filme, sempre às 22 horas:
27/3 e 3/4, no ALL CLUB
7/4 e 19/4, no Melancia Blue
21 de janeiro de 2013
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